Artista conceptual, ativista da paz, cantora, feminista e alma atormentada. Muitos são os epítetos que se podem colar a Yoko Ono. Numa época em que as desigualdades se mantêm, pergunta-nos se temos olhado o horizonte.

Yoko Ono

Nasceu no Japão, mas foi na América que cresceu como artista. Abraçou imensas formas de expressão, mas foi a música que fez correr mais tinta. Era a mulher que supostamente “não sabia cantar”, mas que acabou a influenciar diferentes gerações de artistas. Ainda hoje continua a despertar ódios, enquanto outra metade da internet a defende com unhas e dentes. Para muitos, é “apenas” a polémica viúva de John Lennon, embora tenha sido uma das vozes mais ativas na defesa da igualdade de género, lutando por uma noção de progresso ainda premente.

Pois é. À imagem de outros que surgiram antes dela, Yoko Ono representa aquela mosca que pousa no nariz das convenções, incomodando-as com o seu “ruído”. Foi o que terá acontecido, no início do século passado, com a eclosão das vanguardas europeias, que tentavam obviar duas Guerras Mundiais. Algo de semelhante foi o que também ouvimos, já nos anos ’60, quando Bob Dylan pegou numa guitarra elétrica para amplificar o seu protesto e Andy Warhol ousou financiar a gravação de um álbum dos Velvet Underground – banda composta por gente da má vida que, pelos vistos, só ia fazer barulho.

Ocasionalmente, o mundo parece precisar deste tipo de sismos. E o começo dos anos ’70 lá nos traria outro.

Falo, claro, da sucessão de álbuns com que Yoko Ono nos brindou numa década que ressacava da miragem do sonho hippie. Enquanto as rádios conservadoras tocavam “All You Need Is Love”, havia uma América em escombros, onde as dicotomias entre a Direita e a Esquerda, o status quo e os movimentos feministas, a terra das oportunidades e o ressentimento das minorias étnicas, o puritanismo católico e a liberdade sexual continuavam em polvorosa.

Parece-vos familiar? Talvez porque o mundo anda às voltas, ou apenas porque a mensagem de Yoko Ono ainda não perdeu a validade.

Quem canta, seus males espanta

Ouvir “Plastic Ono Band” (1970) ou “Fly” (1971) é acompanhar dois discos que continuam a desafiar expectativas, redefinindo o que é música e para que serve a arte. Ainda que algo estridentes e fantasmagóricos à primeira vista, os famosos “gritos” de Yoko Ono, o seu inusitado estilo vocal (inspirado em técnicas de teatro japonês) e a forma como transformava qualquer tema num manifesto próprio acabaria por dotar o Rock de um renovado vocabulário para expressar a dor, o desespero, o medo e a obsessão, mas também outras formas de utopia.

É que ao contrário de outros pioneiros do mundo alternativo – como, por exemplo, Lou Reed ou os alemães Can (mais preocupados em narrar, respetivamente, a decadência das ruas ou o nonsense) –, muito do que a artista nipónica fez foi influenciado pelos tumultos interiores de uma infância sem suporte emocional, de um sistema legal que a fez perder a filha (após um divórcio) e de um mundo repleto de incertezas sociais em que ser mulher e ter opiniões era uma espécie de crime. Naturalmente, todos temos os nossos demónios. Mas canalizá-los para fazer algo que inspire ou paralise os outros não é para qualquer um.

Essa será uma das lições que os primeiros statements a solo de Yoko Ono nos transmitem. Nesses discos, ouvíamos a dissonância, o improviso e as técnicas avant-garde imiscuírem-se em narrativas que partiam do blues rock para se transformarem em qualquer coisa ora disruptiva, ora transcendental. Outras vezes – principalmente na segunda metade do álbum “Fly” –, era dada rédea solta à voz de Yoko Ono para que esta ecoasse a capella com a abstração e a provocação que se tornou sua imagem de marca.

Arising: a luta pela igualdade

Jamais esquecendo a sua militância no coletivo Fluxus e a convicção de que a melhor arte é aquela em que o processo importa mais do que o produto, Yoko Ono sempre primou pela multidisciplinaridade. Não admira, por isso, que a sua primeira grande exposição no Museu de Serralves, no Porto, tenha servido de palco não para a sua faceta mais conhecida, mas antes para mostrar a artista conceptual que ansiava ver o público a interpretar (e finalizar) as suas obras.

Mas à margem dos pequenos exercícios de cinema, dos pregos fixados na pedra, dos poemas com pequenas instruções mentais ou da mítica maçã verde, o que melhor define o percurso artístico de Yoko Ono é a urgência de agir. E em nenhum ponto ficou isso mais evidente do que no projeto Arising – uma secção da mencionada exposição de Serralves, onde o público (neste caso, feminino) é convidado a partilhar depoimentos que relatam a descriminação, o abuso, a misoginia, a injustiça e os dogmas por que ainda passam muitas mulheres em pleno século XXI.

Se desconfiam dos propósitos subjacentes à luta pela igualdade, então nada como pesquisar o projeto e passear os olhos pelos textos de quem sente, através das suas histórias de vida, como ainda está longe o progresso que Yoko Ono tão forçosamente exigia em discos como “Approximately Infinite Universe” (1973).

A “bruxa” e os aprendizes

Para uns, esta octogenária será sempre a mulher que contribuiu para o fim dos Beatles (fruto da sua relação com John Lennon) quando a química entre os seus membros já estava longe do auge. Por norma, são os mesmos que não lhe perdoam as opiniões políticas, quando não mesmo a ascendência asiática e a música “fora da caixa”.

No entanto, há quem veja em Yoko Ono uma visionária que soube cruzar linguagens e dotar a música pop de uma excentricidade que, a partir de então, passámos a acarinhar. Laurie Anderson, Siouxsie Sioux, Diamanda Galás e Björk serão algumas vozes que se deixaram contagiar pela sua liberdade criativa. E não será exagerado dizer que malta dissonante como Suicide e Sonic Youth terão encontrado, na sua postura combativa, alguém próximo das suas constelações.

E se outrora era pouco credibilizada, hoje há gerações de músicos que homenageiam Yoko Ono, em discos como “Yes, I’m A Witch” (2007) e “Yes, I’m A Witch Too” (2016). É lá que ouvimos Jason Pierse (dos Spirtualized), Peaches, Porcurpine Tree, Peter Bjorn and John e muitos outros a reinterpretar as suas músicas com uma produção contemporânea, garantindo que o seu espírito se mantém intacto. Um dos melhores exemplos é a forma como os Blow Up transformaram uma simples canção de amor num dançável manifesto LGBTI, provando que a voz da artista poderia encabeçar diferentes lutas sociais.

Volvidas oito décadas de vida, Yoko Ono consegue ver o impacto do seu legado num mundo em mudança, sabendo – todavia – o muito que falta fazer. Longe de desistir, no entanto, sabemos que continuará empenhada na mais valiosa das artes: saber olhar o horizonte. Até porque é lá que está o futuro.

Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY-SA 2.0 // Gregor Tatschl

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