Um vocalista armado em Elvis e um teclista com um instrumento comprado a preço de saldo. Melodias repetitivas que pervertiam, eletronicamente, o rockabilly e o doo-wop quando o que a malta queria era punk. Concertos que começavam com vaias e terminavam com cadeiras a voar. Tinha tudo para correr mal. Estranhamente, correu bem e tornou-se a história dos Suicide.

Suicide

Ainda hoje, volvidas tantas décadas desde a atribulada Nova Iorque que os viu nascer (nos anos ’70), continuamos a olhar para os Suicide como um OVNI musical. Qual era, afinal, a probabilidade de um escultor que dormia na rua e de um teclista com background no jazz terem não apenas a química necessária para criar algo em conjunto, mas também a capacidade de conseguirem sobreviver a toneladas de hostilidade social, comercial e auditiva?

Talvez com sorte, percalços, resiliência, desespero e atrevimento para fazer música como ainda não se tinha ouvido. Mas como definir aquilo que este projeto (com apenas dois membros e um instrumento digno desse nome) fazia? Era música eletrónica, mas sem a erudição dos pioneiros na área. Era música com apelo rock, mas sem qualquer guitarra ou bateria. Era música pop – mas daquela que ninguém queria cantar. E era, enfim, qualquer coisa parecida com rockabilly e doo-wop, embora contaminados por um futuro distópico.

Mas para responder à pergunta, o melhor é ouvir os três primeiros álbuns – “Suicide” (de 1977), “Alan Vega-Martin Rev” (de 1980, também conhecido como “The Second Album”) e “A Way Of Life” (de 1988) – de um projeto cuja disrupção se exprime nos géneros musicais que ajudou a criar. Há quem veja este duo como pai de expressões como a new wave, o punk, a synthpop, o techno e a música industrial.

Quer dizer que, sem esta gente, talvez Cars, Cabaret Voltaire, Soft Cell, The Jesus and Mary Chain, Nine Inch Nails e até Perfume Genius soassem bem diferentes. Até diríamos que isto era pessoal à frente do seu tempo, se não fôssemos tropeçar num cliché.

Os primeiros Punks

We were breaking the status quo. (…) First was the name, the size of the group, the fact that there was no drummer or guitar player, and you add to that the fear at our live shows, the way we came out. We were definitely swimming upstream.
Martin Rev (1996)

Custará a crer – especialmente para os fãs de Sex Pistols, Ramones ou The Clash – mas parece que os primeiros a usar o famoso adjetivo que tão bem define a rebeldia, o confronto político-social ou o niilismo foram os Suicide. Sim, a banda que só usava um teclado, uma caixa de ritmos e um microfone cheio de efeitos de eco autopromovia-se como “música punk”, ainda antes de qualquer daqueles nomes ter editado o seu primeiro álbum.

Mas a afirmação torna-se menos polémica se deixarmos de pensar no som eletrónico e frígido de Alan Vega e Martin Rev e nos concentrarmos na atitude combativa e anti-establishment, com que a sua música era feita. Ou – lá está – na absoluta economia de meios com que ela era criada. Afinal, não se tratava o punk de simplicidade, crueza e da aplicação da regra do it yourself enquanto se gritava, com dor nas goelas, as agonias e raivas da própria vida?

Acima de tudo, os Suicide eram como uma pedrada no charco do status quo, provando que até o menos impressionante dos aparatos (ao que parece, o teclado da banda até podia dividir espaço com ela no banco do carro) se poderiam lançar as sementes para uma série de movimentos e projetos que surgiriam. Mas a viagem, essa, não foi sempre em linha reta.

O piorio, ao vivo e a cores

I always hated the idea of people going to a concert to be entertained. With us, I always said, “Look, you’re coming off the street. If you think you’re getting entertained by us, forget about it! You are coming off the street to come into the street!”
Alan Vega (1998)

Isqueiros acesos durante uma balada? Salas cheias a entoar refrões? Nada disso. Ver este duo ao vivo – especialmente em meados dos anos ‘70 – era entrar numa realidade paralela (e fisicamente perigosa!), onde o desdém, o medo, a apreensão e a agressividade eram emoções evidentes não apenas nas músicas, mas também no rosto do público que as ouvia, impreparado que estava para a arte dos Suicide. Aliás: quem os viu a fazer a primeira parte de concertos de Elvis Costello ou The Clash deve ter, ainda hoje, umas belas histórias para contar.

Noite após noite, Martin Rev brincava no seu Farfisa, enquanto Alan Vega se esforçava – por entre decibéis de vaias e insultos – por cantar, narrar ou gritar as angústias da sua Nova Iorque. Isto quando não se dedicava (qual frontman de excelência) a provocar o público hostil e a desafiá-lo com insultos e ameaças. Talvez como símbolo da sua própria dissidência, os Suicide editaram um disco ao vivo (“23 Minutes Over Brussels”). Gravado em meados dos anos ’70, o concerto correu tão bem que o microfone do cantor até foi confiscado… pelo público!

Mas porquê tanto ódio à banda? Apenas porque não era todos os dias que um duo de teclado e voz fazia música que nos confrontava com o lado sujo e negro de nós mesmos. Para quê sair do trabalho ou da distopia capitalista quando tínhamos uma banda que nos lembrava dela? Além disso, não havia guitarras, bateria ou sons familiares. Mas claro que o tempo passou e a chocante boa nova dos Suicide passou a fazer parte do nosso léxico. Aliás, num célebre concerto de 1987, os protestos voltaram, mas por uma razão diferente: o som estava demasiado baixo e aquela gente queria – literalmente – ouvi-los!

​Mudam-se os tempos…

A luz ao fundo do túnel

Costuma dizer-se que no melhor pano cai a nódoa. No caso dos Suicide, podemos afirmar o oposto: no meio do negrume, do ruído áspero, das notas no teclado repetidas ad infinitum e da falta de esperança surgiam, por vezes, curiosos laivos de luz. Os mais cínicos poderiam dizer que incluir uma balada melancólica num álbum repleto de almas penadas e niilismo cheirava a cedência comercial. Mas mesmo que isso fosse verdade, certo é que o grupo nunca teve hits.

E, por mais que fujam da eletrónica decrépita e (pré) industrial que se tornou sua imagem de marca, músicas como “Cheree” (a mais bonita canção de amor doentio já feita?), “Sweetheart” (com Alan Vega a fantasiar que é um bon vivant), “Dream Baby Dream” (a única canção “otimista” do duo?) ou “Surrender” (com o seu romantismo falsamente inocente) são mais do que uma pequena parte do reportório dos Suicide: são razões por que lá voltamos com a frequência com que o fazemos.

Mas a que conclusão chegamos quando o grupo que narrou homicídios motivados pelo desemprego (já ouviram “Frankie Teardrop”?) ou que falava dessa Big Black City que é “Harlem” (repleta de chulos, máfia, drogados e bófia) é também o mesmo que permitiu que nos encantássemos com a beleza de um corpo, a suavidade de um sorriso ou a candura de um sentimento mais nobre (aquele que, em inglês, começa por “L”)? Talvez que até nas trevas de uma distopia era possível começarem a desenhar-se os contornos de uma utopia.

E já que falamos de utopias, convém lembrar que o percurso dos Suicide – hoje um dos mais influentes projetos da música alternativa – é o reflexo de uma. Afinal, eles haviam sido os primeiros a anunciar a própria morte e tinham tão pouco a perder que hoje continuam “vivos”.

Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY-SA 3.0 // Canada Jack

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