Nos 40 anos da editora Crammed Discs, a sua série Made To Measure volta ao ativo com algumas reedições remasterizadas e novos lançamentos. Para começar, de novo temos um álbum do duo Nova Materia e a promessa, para lançar mais à frente, de um trabalho do grupo Aquaserge. Vamos ver e rever tudo isso com alguma atenção.

Nova Materia

Fazer (e transformar)… por medida

A série Made To Measure surgiu em 1984, com um disco que apresentava quatro peças dos Minimal Compact, uma de Benjamin Lew, sete dos Aksak Maboul e três dos Tuxedomoon. Era uma finíssima amostra do que a editora belga Crammed Discs pretendia fazer com este novo selo discográfico. A capa de “Made To Measure Vol. 1″ (MTM1) continha a pintura “Les Boxeurs”, de Fernand Steven (1895-1955), enquanto a produção do disco ficava nas mãos de Benjamin Lew, Gilles Martin, Marc Hollander, Vincent Kenis, Peter Principle e dos Tuxedomoon. Que belo princípio!

Desde logo, esta série de edições afirmava-se dedicada às novas músicas, propondo-se a apresentar peças que tivessem sido ou pudessem ter sido ou mesmo vir a ser utilizadas como bandas sonoras. Como neste primeiro disco, que apresentava umas quantas obras bem relacionadas com outras artes: “Pieces For Nothing” (para um bailado), “À la Recherche de B.” (para uma apresentação de moda), “Scratch Holiday” (para um filme privado), “Un Chien…” (para uma peça de teatro) e “Verdun” (para um outro filme). A matriz editorial era clara e estava assim definida.

Ao longo dos dez anos que se seguiram, a Made To Measure lançou trinta e cinco álbuns, cobrindo uma ampla variedade de aventuras musicais criativas, que muitas vezes se aproximavam da música dita neoclássica, de câmara, ambiental, eletrónica, minimalista, experimental ou de vanguarda. Made To Measure, designação que nos remete para a indústria da costura feita à mão e por encomenda, procurava dar um fundamento lógico ao propósito da editora: criar uma coleção de peças musicais que fossem ou pudessem ser feitas e combinadas para servir outras formas de arte. O cruzamento entre a música e outros domínios artísticos viria a encontrar exemplos nas colaborações com os cineastas Jim Jarmusch, Wim Wenders, Bernardo Bertolucci e Tom Tykwer, com os coreógrafos Maurice Béjart, Karole Armitage, Régine Chopinot e Philippe Découflé, ou com os criadores de moda Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo (da Comme des Garçons), mas não só…

Um dos fundadores do cubismo, o pintor Georges Braque (1882-1963), dizia “je ne me sens pas obligé de définir ce fruit, qui est là, car si je mets dans une corbeille une orange à côté d’un citron, l’orange cesse d’être une orange et le citron cesse d’être un citron pour devenir fruits”. Ou seja, afirmava ele, quando se juntam duas coisas conhecidas, o que conta não é cada uma delas só por si, mas sim o resultado da sua combinação em algo novo. “C’est cette transformation qui compte.” É isso também: transformar, para além de fazer!

A Crammed Discs e a sua descendente Made To Measure

Em 1993, a Made To Measure edita “Le Parfum du Raki” (MTM35), de Benjamin Lew, mas depois praticamente interrompe os novos lançamentos. Lançou em 1995, ainda assim, “Les Dieux Sont Fâchés” (MTM36), de Jean-Marc Zelwer, e “Glyph” (MTM37), de Harold Budd e Hector Zazou. E depois parou!

O novo “Bardo Hotel Soundtrack” (MTM38), dos Tuxedomoon, só veria a luz do dia em 2006. A este lançamento isolado seguiu-se, em 2013, o álbum “Clear Tears | Troubled Waters” (MTM39), do trio composto por Steven Brown, Blaine L. Reininger e Maxime Bodson. Em 2014, “It Is Time For You To Return” (MTM40), um álbum a solo de Jozef Van Wissem. Em 2015, “Dangerous Orbits” (MTM41), de Bérangère Maximin e a banda sonora para o documentário “Blue Velvet Revisited” (MTM42), assinada pelos Tuxedomoon com o duo Cult With No Name. Em 2017, “Passé Composé Futur Conditionnel” (MTM43), dos Le Ton Mité. Depois, em 2019, ainda “Mountains And Plains” (MTM44), do artista que assina como Stubbleman.

A editora mãe Crammed Discs continuou extremamente ativa e desbravadora de caminhos: até 2021, ano do seu 40º aniversário, lançou quase 400 álbuns. Mas a Made To Measure sempre teve um estatuto diferenciador que tornou esta série, com o tempo, um objeto especial, de grande admiração e de colecionismo. Neste ano do aniversário há novos lançamentos e o início de reedições remasterizadas. Vamos por isso, com o rigor possível, rever o passado e observar o presente ou antecipar o futuro deste catálogo:

MTM1 – V.A. – Made To Measure Vol. 1 – CD/LP (remasterizados)
MTM2 – HECTOR ZAZOU – Reivax au Bongo – CD
MTM3 – BLAINE L. REININGER & MIKEL ROUSE – Colorado Suite – agregado ao MTM6
MTM4 – PETER PRINCIPLE – Sedimental Journey – CD
MTM5 – HECTOR ZAZOU – Géographies/ 13 Proverbes Africains – CD/LP (rematerizados)
MTM6 – MIKEL ROUSE & BLAINE L. REININGER – Colorado Suite/ A Walk In The Woods – CD
MTM7 – JOHN LURIE – Stranger Than Paradise And The Resurrection Of Albert Ayler – descatalogado
MTM8 – SUSSAN DEYHIM & RICHARD HOROWITZ – Desert Equations – CD
MTM10 – MINIMAL COMPACT – Lowlands Flight – CD
MTM11 – AKSAK MABOUL – Music For Yohji Yamamoto – não editado
MTM12 – YASUAKI SHIMIZU – Music For Commercials – CD/LP (remasterizados)
MTM13 – DANIEL SCHELL & KARO – If Windows They Have – esgotado
MTM14 – JOHN LURIE – Down By Law – descatalogado
MTM15 – BENJAMIN LEW & STEVEN BROWN – Douzième Journée: le Verbe, la Parure, l’Amour – esgotado
MTM16 – BENJAMIN LEW & STEVEN BROWN – A Propos d’un Paysage – esgotado
MTM17 – BENJAMIN LEW – Nebka – esgotado
MTM18 – PETER PRINCIPLE – Tone Poems – esgotado
MTM19 – SAMY BIRNBACH & BENJAMIN LEW – When God Was Famous – CD
MTM20 – HECTOR ZAZOU – Geologies – esgotado
MTM21 – FRED FRITH – The Top Of His Head – CD/LP
MTM22 – STEVEN BROWN & DELPHINE SEYRIG – De Doute et de Grâce – esgotado
MTM23 – ARTO LINDSAY & PETER SCHERER – Pretty Ugly – esgotado
MTM24 – ZELWER – La Fiancée aux Yeux de Bois – esgotado
MTM25 – GABOR KRISTOF – Le Cri du Lézard – esgotado
MTM26 – STEVE SHEHAN – Arrows – esgotado
MTM27 – DANIEL SCHELL & KARO – Le Secret de Bwlch – esgotado
MTM28 – KARL BISCUIT – Aktualismus – esgotado
MTM29 – SEIGEN ONO – Nekonotopia Nekonomania – esgotado
MTM30 – RAMUNTCHO MATTA – Domino One – esgotado
MTM31 – DAVID CUNNINGHAM – Water – descatalogado
MTM32 – HECTOR ZAZOU – Sahara Blue – CD
MTM33 – BRION GYSIN – Self-Portrait Jumping – esgotado
MTM34 – JOHN LURIE NATIONAL ORCHESTRA – Men With Sticks – descatalogado
MTM35 – BENJAMIN LEW – Le Parfum du Raki – CD (já raro)
MTM36 – ZELWER – Les Dieux Sont Fâchés – CD
MTM37 – HAROLD BUDD & HECTOR ZAZOU – Glyph – CD
MTM38 – TUXEDOMOON – Bardo Hotel Soundtrack – CD
MTM39 – BROWN REININGER BODSON – Clear Tears | Troubled Waters – CD
MTM40 – JOZEF VAN WISSEM – It Is Time For You To Return – CD/LP
MTM41 – BÉRANGÈRE MAXIMIN – Dangerous Orbits – CD/LP2
MTM42 – TUXEDOMOON & CULT WITH NO NAME – Blue Velvet Revisited – CD/LP
MTM43 – LE TON MITÉ – Passé Composé Futur Conditionnel – CD/LP2
MTM44 – STUBBLEMAN – Mountains And Plains – CD/LP
MTM45 – NOVA MATERIA – Xpujil – CD/LP

Nova Materia e Aquaserge são os novos lançamentos da Made To Measure

O lançamento mais recente da Made To Measure é, como se vê acima, o álbum “Xpujil” (MTM45), dos Nova Materia, duo de origem chilena que se estabeleceu em Paris. Em 2018 a Crammed Discs tinha já apresentado o seu primeiro álbum, “It Comes”, descrito como um trabalho eletrónico, experimental, frio e ritualístico. “Xpujil”, este novo disco, consiste numa peça musical imersiva com 40 minutos de duração total, que se propõe a levar o ouvinte numa visita sónica a um mundo orgânico e mutante, procurando-se esbater os limites convencionais da música, associando-lhe sons captados na natureza quase virgem, complementados com efeitos descritos como psico-acústicos.

Conta-se que este projeto começou numa caminhada pela selva mexicana, sob intenso calor e entre vegetação densa, insetos e sons de animais selvagens, como se o caminho em direção à antiga cidade maia de Xpujil fosse sobrenatural ou mesmo sagrado. Todos esses sons foram gravados com microfones biauriculares e, já em Paris, no seu atual estúdio, a francesa Caroline Chaspoul e o chileno Eduardo Henriquez, do duo Nova Materia, processaram e modularam as gravações. Acrescentaram gongos, ocarinas e instrumentação eletrónica, mais os contributos dos seus convidados Ikue Mori (que trabalhou sobretudo na reinterpretação dos sons dos insetos) e do violoncelista Gaspar Claus (filho do guitarrista espanhol Pedro Soler e colaborador de músicos como Rone e Jim O’Rourke). Depois, o trabalho do coletivo foi misturado com ferramentas desenvolvidas pelo Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM), usando um sistema de som de 8 vias, para acrescentar a espacialização e melhor reproduzir um ambiente envolvente e natural.

Mas, para além da fruição sónica imediata, proporcionada em disco num sistema estéreo, o projeto “Xpujil” poderá ser apreciado também nas apresentações audiovisuais que farão em breve, em associação com La Gaîté Lyrique, um centro cultural que dá primazia e destaque às artes musicais e digitais. Esta obra comporta uma dimensão transcendente, quase ritualistica ou mesmo litúrgica, onde há algo de primitivo e também de moderno: por um lado a incorporação de sons incomuns, naturais ou gerados por materiais rudes e não elaborados, como as pedras ou o metal, por outro o lado tecnológico, mas austero e quase cerimonial, que nos faz recordar até a “Musica Ricercata” de György Ligeti. Um espaço que é permeável e maleável também, com a intervenção de outros artistas.

Foi esse desafio de misturar formas e conceitos que prevaleceu até aqui, na série Made To Measure, e é isso que contamos continuar a encontrar. Temos para já este novo e talvez surpreendente disco e lá para o fim do ano um novo lançamento assinado pelo já conhecido grupo Aquaserge. Algo mais já se sabe: “The Possibility Of A New Work For Aquaserge” deverá ser lançado a 15 de outubro, sendo inspirado em quatro grandes figuras atípicas da música erudita do século 20: György Ligeti, Giacinto Scelsi, Edgard Varèse e Morton Feldman.

Num vasto mundo de transformações musicais, que a Made To Measure sempre acalentou, o que conta continua a não ser cada uma das partes, isoladamente, mas o que da sua combinação resulta. “C’est cette transformation qui compte”, como já dizia Braque.

Texto CC BY 4.0 // Luís Freixo
Imagem © Crammed Discs

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