Da música clássica com sensibilidades cinematográficas à folk cantada por uma menina com voz de mulher, sem esquecer a eletrónica saltitante de um quarteto de órgãos. Também destas singularidades se faz a Islândia musical que hoje continuamos a percorrer.

Lagoa Azul (Islândia)

Na passada semana, aventurámo-nos num dos tipos de viagem mais económicos e seguros que poderíamos fazer em tempos de pandemia: aquela que nos permite conhecer latitudes, saborear texturas e contemplar paisagens sem sair do lugar. Não, não fizemos nenhum passeio visual pelo Google Maps. Mas explorámos, auditivamente, alguns dos mais interessantes monumentos da música feita na Islândia.

Conhecida como um dos últimos lugares do mundo a ser habitado pelo Ser Humano, a mítica ilha nórdica tem fascinado gente de todo o globo, seja fruto da qualidade de vida que por lá se respira (pista: quase toda a Energia produzida naquela país é de origem natural e sustentável), seja pela idiossincrasia que associamos à pop, ao rock, à eletrónica e até à música clássica feita na Islândia.

Rica em vulcões e glaciares, já sabíamos que a Terra do Fogo e do Gelo não tinha motivos para ficar atrás da produção musical anglo-saxónica que nos chega todos os dias. O que ficou, por outro lado, esclarecido é que a viagem se revelou tão rica e vasta que até necessitámos de um segundo capítulo. É por isso que aqui estamos.

Façam bom proveito!

Jóhann Jóhannsson: a (e)moção da música

Nunca tive o privilégio de até lá viajar, mas dizem os entendidos que a Islândia é um dos lugares mais privilegiados do mundo para se contemplar a Aurora Boreal. Não preciso, todavia, de uma verificação empírica para acreditar na ideia. Basta permitir que um álbum do malogrado teclista e compositor Jóhann Jóhannsson ecoe pelo ar e deixar que as luzes do céu, a suavidade do mar e a infinidade do horizonte penetrem na pele, interferindo no pulsar cardíaco e na nossa noção do que é, efetivamente, o aqui e o agora.

Algures entre os universos da música erudita e da sensibilidade pop – e quebrando a dicotomia entre a música que existe como forma autónoma de expressão ou apenas como pano de fundo para filmes, danças, ou peças de teatro –, o islandês locomoveu-se por entre diferentes estados de espírito, abordagens e meios. Houve, por isso, espaço no percurso de Jóhann Jóhannsson para a música ambiente, para o acrescento de tecnologias eletrónicas e até para a presença de vozes – mais ou menos sintetizadas – a declamar ancestrais versos poéticos em composições minimalistas.

Deixar que “Englabörn” (2002), primeiro disco do compositor islandês, se manifeste no ar é como abrir as páginas de um romance que nos exige a capacidade de imersão e a espinha dorsal para lidar com o que resta de nós, assim que a maré vaza. O próprio Jóhann Jóhannsson foi o primeiro a assumir que, mais do que acreditar na riqueza do som como um fim em si, compunha música influenciada pelas possibilidades dramáticas ou cénicas que uma boa narrativa exige. Falamos, portanto, de música que se move e comove.

Ólöf Arnalds: folk da menina e moça

Apesar de tudo o dissemos até agora, a Islândia não é feita apenas de bonitas paisagens e de vida pacata. Falamos, afinal, daquele país em alto mar que se tornou exemplo mundial, não só de boa Democracia, mas também de Igualdade de Género. Mulheres com salário inferior aos Homens? O sexo feminino alienado dos cargos de chefia e da liderança política? Não neste lugar! E já que falamos nesse tema, por que não dedicamos umas boas linhas a uma grande artista? Assim chegamos à agridoce idiossincrasia de Ólöf Arnalds.

A partir do ameno clima de Reiquiavique, a cantora e multi-instrumentista encontrou na folk (com um vago travo a pop) o idioma para narrar as emoções, medos e agruras de personagens que têm conquistado corações um pouco por todo o mundo. Claro que a decisão de editar, em 2013, um álbum totalmente cantado em inglês (o elegante “Sudden Elevation”) ajudou a fazer com que as estórias e poemas inspirados pelos dias passados numa cabana à beira-mar soassem ainda mais quentes ao ouvido indiezado. Ah, e tudo isto recorrendo às suas competências enquanto autodidata em vários instrumentos de cordas!

À margem do trabalho ao vivo com os compatriotas Múm, a cantautora reuniu o elogio de ícones da música islandesa, desde o primo Oláfur Arnalds (sim, o compositor de quem falámos na semana passada) à incontornável Björk (com quem chegou a gravar um dueto). Por detrás desse reconhecimento está a capacidade vocal de uma mulher que nos reporta para um efabulado universo onde se pressente, todavia, a melancolia da solidão. Colhendo os frutos de uma arte sem influências fáceis de definir, Ólöf Arnalds pôde financiar o disco de que falámos através de crowdfunding. Lá está: é a Democracia a funcionar.

Apparat Organ Quartet: o teclado na Era da Técnica

Quando falamos da Islândia, costumamos fazer referência às encantadoras paisagens que a natureza proporciona e que nos lembramos de séculos dedicados à agricultura e à pesca. Ironia das ironias, o país nórdico é hoje uma das nações mais desenvolvidas do mundo, sendo um grande produtor de alumínio e de eletricidade, por exemplo. Vem esta conversa à baila apenas porque também desse pacato lugar nascem propostas musicais cheio de energia, bom humor e experimentalismo q.b.

E como terminar o texto de hoje sem mencionar o Apparat Organ Quartet? Tal como o nome indica, temos quatro músicos numa “família” onde o órgão é rei e senhor. Calma: não estamos a falar daquele instrumento que se associa à Igreja. Pelo contrário, o que aqui toca é sua variante elétrica, embora sempre de forma analógica. E como começou este projeto musical que, entre outros compositores, chegou a englobar o já mencionado Jóhann Jóhannsson? Ao que tudo indica, o Apparat Organ Quartet nasceu como uma simples experiência ou curiosidade artística.

Mas a química entre os músicos (todos eles associados a outros projetos) e o poder contagiante daquelas melodias feitas num rock enérgico que não escondia o piscar de olho aos Kraftwerk ou a tecnofilia que haveríamos de ouvir, anos mais tarde, nos Public Service Broadcasting, quiseram que a banda tivesse uma longevidade diferente. E o mundo, mimado com discos como o magistral “Pólýfónía” (de 2010), ficou um bocadinho mais colorido, otimista e brincalhão. Ouçam “Cargo Frakt” ou “Konami” e gritem connosco Amém, pois a soberania destes órgãos veio para ficar!

Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY 4.0 // Luís Freixo

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