Conhecida por editar Joy Division e New Order, a excêntrica editora de Manchester deu voz a outros valores da música alternativa. Alguns, mesmo na era do streaming, continuam pouco visíveis.

Manchester

Poucas editoras na história da música independente se podem gabar de um legado tão idiossincrático quanto o da Factory Records. Da fria Manchester para o resto do mundo, o que começou como um pequeno projeto editorial acabaria por se tornar não só no símbolo máximo do pós-punk cinzento que a viu nascer, mas também de uma efervescente cultura noturna, que ficou conhecida como Madchester. Já a esses capítulos acrescentam-se outros que, embora subtis, também marcaram a cultura pop britânica.

Ora vejamos: a começar pelo ingénuo modelo de negócio proposto pelo gerente Tony Wilson, passando pela claustrofóbica sonoridade com que Martin Hannett produziu álbuns e singles, sem esquecer o arrojo visual do designer Peter Saville, muitas são as linhas que poderíamos dedicar ao universo da Factory Records. Custa a crer, por isso, que Joy Division, New Order e (quando muito) Happy Mondays continuem a ser, para muitos, as únicas faces visíveis de um selo que nunca coube em apenas um ou dois estereótipos.

Sim, é verdade que a Factory Records merece ficar na história por editar “Love Will Tear Us Apart”, “Blue Monday” e “Step On”. Mas que seria do mundo se nos esquecêssemos de que também aqui se provou que o idealismo do punk podia encontrar um destino válido no gingar das ancas? Ficaríamos melhor servidos sem o abstracionismo de uma guitarra a reverberar, melancolicamente, no infinito? E como teríamos a certeza da fronteira exata onde o rock e a eletrónica se poderiam ilogicamente fundir?

Três perguntas que merecem três respostas a condizer. Que se abra então o baú da famosa editora e se deixe entrar luz sobre projetos musicais que os algoritmos do streaming parecem continuar a deixar para trás!​

A Certain Ratio: o punk que até dança

O nome da banda diz tudo: é como se A Certain Ratio sempre houvesse tentado encontrar o equilíbrio ideal ou o ponto de confluência entre linguagens e temperaturas que nunca imaginámos que pudessem coexistir. Não se deixem, por isso, enganar pelo negrume dos primeiros singles, que tresandavam a Joy Division. Até porque a simetria aconteceu quando o niilismo e a aspereza do punk inglês começaram a perder peso para o outro prato da balança, rico em funk e inspirado pela vida noturna de Nova Iorque.

Testemunhas privilegiadas da espantosa relação entre essas duas grandezas são os álbuns “To Each…” (1981) e “Sextet” (1982). Orelhudos e experimentais, repletos de apelo pop mas ainda capazes de nos fazer mergulhar em turbulentos exercícios de percussão, à medida que vozes fantasmagóricas competem com o trompete pela nossa atenção. Dito assim, parece uma salada russa e certo é que os ingredientes acabariam por se incompatibilizar no futuro. Mas enquanto durou, a mistela foi muito boa! E projetos musicais como !!! ou LCD Soundsystem fizeram bem em tomar nota.

The Durutti Column: o artesanato na guitarra

É verdade que os ouvintes de espírito mais aberto haverão, cedo ou tarde, de se cruzar com as seis cordas do britânico Vini Reilly. Ainda assim, e por mais elogios que o introspetivo músico tenha recebido desde os anos ’80, uma qualquer força invisível continua a impedir que o consenso artístico em torno do grupo se traduza numa aclamação pública mais vasta. Será por causa da timidez do seu protagonista? Da tendência para a aposta em composições geralmente instrumentais? Ou apenas fruto das suas músicas, que escapam aos rótulos fáceis?

Há quem diga que o projeto de Vini Reilly (e do baterista Bruce Mitchell) é aquilo a que o Fado soaria se fosse cantado por uma guitarra elétrica. Outros preferem falar das notas musicais que levitam no éter como pinturas abstratas. E se entrámos no domínio das descrições impressionistas é porque se costuma ouvir em The Durutti Column uma companhia pessoal e intransmissível. Da melancolia ou da tranquilidade ao experimentalismo com samples e caixa de ritmos, já para não falar dos belos momentos conduzidos ao piano, eis um projeto que se desdobra em muitas facetas, todas reconhecíveis. Aos que agora se aventuram, aconselha-se o disco “LC” (1981).

Section 25: emoções orgânicas e sintetizadas

Detentora de um dos elencos mais instáveis da Factory Records, a Section 25 já foi um bocadinho de tudo: fez rock primário cantado no masculino, aventurou-se nas deambulações glaciais do pós-punk e, a certa altura, deixou o sexo feminino dominar a voz e os teclados. Foi a melhor escolha possível, mesmo que à primeira vista se possa dizer que “From the Hip” (1984) – o trabalho mais consistente da Section 25 – saiba a fruta da época. Aqueles sintetizadores agridoces, as doses de eletrónica borbulhante e o melódico pulsar do baixo lembram, de facto, alguns colegas de editora.

Apesar disso, o disco surpreende pela diversidade de paisagens que nos leva da música ambiente a momentos de pop sentimental, havendo também intervalos para celebrar o soturno cosmopolitismo do norte inglês, a par de momentos que parecem feitos para eternizar as noites no mítico Haçienda (a casa de espetáculos/discoteca que a editora também fundou). Mas como poderíamos acusar um álbum de se prender ao passado se atributos como synthpop, electro, dream pop e pós-punk tanta presença marcaram no léxico pop e alternativo da década que agora terminou? É como se a Section 25 nunca se tivesse ido embora.

Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY-SA 2.0 // David Dixon

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