Os Aksak Maboul, de Marc Hollander, o fundador da Crammed Discs, são um “mundo de aventuras” e “Onze Danses Pour Combattre La Migraine”, de 1977, foi a primeira expedição musical que revelaria o seu universo. Desde então, outras a seguiram…

Aksak Maboul

E diz Marc Hollander, sobre o álbum “Onze Danses Pour Combattre La Migraine”, de 1977: “Sendo um autodidata, sempre ouvi uma grande variedade de música. Enquanto trabalhava neste álbum, quis abordar diferentes géneros e cedo me apercebi que quando tentava criar a impressão de um certo estilo musical, as minhas limitações técnicas e a minha particular e parcial compreensão do que tentava imitar, transmitia um interessante toque pessoal ao resultado. O que mostra por vezes haver virtude no falhanço.”

Não que este álbum delicioso seja um fracasso, pelo contrário, mas o parágrafo acima explica a autenticidade de um músico, esta qualidade tantas vezes independente do tecnicismo que desbarata a espontaneidade. Na editora que vai fundar, a Crammed Discs, Marc Hollander (com Vincent Kenis), haverá lugar marcado para a nostalgia étnica: desde a Roménia até Tuva, passando pela África Central e do Norte.

Aksak Maboul nasceu de um pedido do músico Marc Moulin (dos belgas Placebo e uma excelente carreira a solo) a Marc Hollander, para escrever e gravar, em curto espaço de tempo, um disco para uma pequena editora, a Kamikaze.

Hollander, ajudado por Kenis e uma série de músicos convidados, estabelece o cânone do projeto: Aksak Maboul junta expressões turcas e francesas para definir a sonoridade: “um louco que anda pela rua a mancar” – que melhor nome para a assimetria doidivanas do novo projeto, que, ao contrário de todas as expectativas, editou um novo álbum (“Figures”) em 2020? Sim, tomem cuidado, os Aksak Maboul ainda andam por aí… “a mancar”.

​No primeiro álbum, este despretensioso projeto é a visão artesanal de uma hipotética música planetária – o estupendo título é um achado. Fiquemo-nos então, para já, neste jardim onde há esconderijos por toda a parte.

Miniaturas instrumentais, canções, pianos

Miniaturas instrumentais, como “Mercredi Matin”, alternam com canções que veneram o Nino Rota de Fellini ou um coral de Philip Glass. Possivelmente os tamanhos pequenos não agradam a toda a gente, mas pensem no instante fotográfico: a melodia ficou retida e depois é só assobiarmos, reinventando.

Um firmamento calorento cobre “Milano Per Caso”, onde Catherine Jauniaux (heroína do próximo álbum, “Un peu de l’âme des bandits”, editado três anos depois) vem à varanda recolher a roupa e não fica mais do que um minuto a trautear a cançoneta dos instrumentos.

No lindíssimo “Chanter Est Sain”, a escassez de meios é a chave para o efeito etéreo – há qualquer coisa que lembra o Wim Mertens (também é belga!) da sua criativa primeira fase. Um piano socrático (ou o que seja!) enamorado de duas vozes, uma delas a ditar frases de um livro médico, onde se explica que cantar faz bem à saúde, coisa que só os mal-humorados ainda não compreendem.

Paisagem sonora em tarde estival e outros diaporamas musicais

Tomemos “DBB (Double Bind Baby)”, um soberbo momento paisagístico, o piano a marulhar na piscina em tarde estival, Hollander explica que é uma “ode para amigos debaixo d’água” enquanto projeta diapositivos sobre uma montanha obsessiva na Suíça.

“Cuic Steppe” é um emaranhado de influências inocentemente dispostas a mandar às urtigas técnicas académicas, como o fizeram Debussy e Ravel no século passado.

“Son Of L’Idiot” viaja entre danças imaginárias de clarinetes e flautas.

Preguiçosamente, o álbum atravessa recatados recantos até chegar a vez da delirante voz infantil em “Tous Les Trucs Qu’il Y A Là Dehors”, irrequieta e ofegante a descrever cenas do quotidiano, a distrair Hollander no seu “hesitante Fender Rhodes” (sic). Antes do fecho, uma ponta de melodia dos Cárpatos espreita e vai-se embora.

Um inesgotável mundo de aventuras

Logo vêm os temas que não foram incluídos na edição original do álbum. “The Mooche” destaca-se como adaptação deveras criativa da canção de Duke Ellington, as caixas de ritmo como se nascessem ali, bafejando vida própria, ao que rapidamente se circula para uma improvisação jazzy, ainda com vagas lembranças do Duke precedente.

“Glympz” é idêntica bizarria, e não só no nome, pois é outra semi-improvisação com Hollander e Kenis sem mãos a medir, emulando uma África idealizada, um cumprimento entre pigmeus e berberes, e tudo aquilo que a Europa pragmática arruinou.

“Three Epileptic Folk Dances” é o que o título induz, um folclore descoberto nas vertigens citadinas, néons, buzinas de automóveis, passos apressados, pássaros famintos nas árvores dos jardins.

“Mastoul Alakefak” tem um sabor a Soft Machine naqueles encantadores Fender Rhodes, o teclado mais sensual do planeta.

“Comme On A Dit” é a definitiva miniatura (talvez omitida na edição original), a juntar a todas aquelas que perpassam pelo álbum, surripiando respirações, dando voltas na cama, insinuantes, inesgotáveis e “Mercredi Matin” tem só órgão Farfisa e darbuka, mas assemelha-se a uma multidão pululante, entrando-nos pela sala dentro.

Cativante o desenho da capa (acaso será de inspiração Gong?), a das sombras de uma natureza-morta povoada de bananas, à luz vespertina. Servirá isto para ilustrar a ambiência deste álbum? Os Aksak Maboul são um “Mundo de Aventuras” (a revista da nossa infância e adolescência, não o disco dos Ban).

Esta foi a primeira expedição no seu universo. Outras se sucederiam e nas cenas do capítulo que se seguiu, os Aksak Maboul perdem a inocência e até a capa será bastante mais ousada…

Texto CC BY 4.0 // António Jorge Quadros
Imagem © Crammed Discs

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