Agora que os Pop Dell’Arte regressaram aos discos com “Transgressio Global”, aproveitemos para refletir um pouco sobre as várias formas de ouvir um grupo que não cessa de remar contra a corrente.

Pop dell'Arte

Lembro-me da primeira vez que ouvi uma canção de Pop Dell’Arte. Eu era mais um jovem que deambulava metaforicamente pelas ruas da música alternativa — aquelas que prometiam fazer pensar e que davam uma aura de “gajo cool” a quem as percorria. Foi então que me deparei, nesse caminho exploratório, com uma quelha escura e grafitada, onde o aroma a decadência convivia com um sentido de humor mórbido e niilista. Ingenuamente por ali me aventurei, dando de caras com uma inesperada faceta dos anos ‘80.

​Não aguentei muito tempo, pois aquela amálgama de exercícios percussivos, ásperas guitarras e scat-singing era demasiado difícil de digerir. Tratava-se do single “Querelle” – talvez a coisa mais “contra natura” com que me havia cruzado em Portugal. Essa seria a perceção com que para sempre ficaria do gangue de João Peste, não fosse a curiosidade ter-me levado, anos mais tarde, a explorar o catálogo da editora Ama Romanta (um selo de música independente que, entre outros, publicaria álbuns de Sei Miguel, Telectu ou Nuno Canavarro).

Fundado pelo frontman dos Pop Dell’Arte, esse projeto editorial sonhava combater a alegada ditadura que se abatia sobre uma série de artistas incapazes de se conformarem com as estéticas do mainstream. Do jazz ao punk, passando pela música eletrónica e até por momentos de declamação poética, celebrava-se a divergência cultural numa iniciativa que pudesse agitar consciências. E se a mítica editora cedo acabaria por cessar funções, o mesmo não se pode dizer dos seus mais ardentes defensores que, para além de editarem discos com semi-regularidade, renasciam sempre das cinzas para redefinir a utilidade da canção rock.

Assim são os Pop Dell’Arte. E, sim, os agents provacateurs tão abrasivos de “Querelle” (1986) são os mesmos que, 34 anos depois, orquestraram a sátira política de “The King Of Europe”. Pelo meio, vestiram muitas peles e namoraram com diversos idiomas, conseguindo incomodar muita gente, incluindo o autor destas linhas. Choque, incompreensão, dúvida, reconhecimento e vontade de cantar são os estados de espírito por que passam, gradualmente, aqueles que deixam entranhar esta gente desalinhada. E se é impossível alguém gostar de todas as músicas do grupo, celebremos então as várias facetas deste projeto que, na sua génese, só queria concorrer ao Rock Rendez-Vous de ‘85.

Os sonhadores ‘Pop’

Não por acaso, a canção mais conhecida do grupo lisboeta (“Sonhos Pop”) é precisamente aquela em que se professa o amor por artistas tão diferentes como Marcel Duchamp, Francis Picabia, Raymond Russel, Ian Curtis ou Marc Bolan. A partir daí, os Pop Dell’Arte nunca mais pararam de citar (ou parodiar) a cultura pop, quando não mesmo os mais diversos movimentos artísticos (dada e surrealismo) ou, porque não, a alta literatura?!

Isso mesmo! Para cada sátira que se fizesse a Janis Joplin (descrita como a “divine queen of drugs”) ou ao idealismo rock dos anos ‘60 (afinal, “All You Need Is Money”), havia também momentos menos irónicos, em que se imortalizava a poesia de vultos como Erza Pound (na autoexplanatória “Pound By Pound”) ou, tal como acontece no novo disco, Luís Vaz de Camões. Acima de tudo, saborear Pop Dell’Arte é como percorrer um excêntrico glossário de referências culturais do mundo Ocidental.

Por isso mesmo, só uma mente culta e atenta será capaz de descodificar todo o cinema, música, livros e artes plásticas que informam o imaginário de João Peste e companhia. De resto, e numa referência ao disco “Ready-Made” (1992), é como se o coletivo lisboeta tomasse de assalto a arte alheia para a reinterpretar, questionar ou apenas pedir de empréstimo durante escassos minutos. E quantas bandas pop fazem isso?

Os transgressores globais

Há bandas para as quais é fácil encontrar um ou dois adjetivos capazes de as definir. Mas como poderíamos sumariar a excentricidade deste projeto? Chamá-lo-íamos de iconoclasta? Ou utilizaríamos o título do mais recente álbum, acusando-o de transgredir os brandos costumes lusos? Não foram poucas as vezes que o grupo nos desafiou a refletir sobre as nossas convenções estéticas ou acerca do significado do que era “boa música”.

Pensando bem, como poderíamos sentir empatia por canções aparentemente sem nexo, narradas numa língua que ninguém sabia dizer qual era? E como classificar aquilo que nunca se tinha ouvido em Portugal? Mas para além de nos convidarem a apreciar o que haveria de mais estimulante na arte de se ser dissonante, o aventureirismo dos Pop Dell’Arte sempre extravasou o mundo sonoro.

Por essa razão, e à margem de canções como a desbragada “My Funny Ana Lana” (onde se canta “legalize marijuana all over the world and here”), convém não esquecer o arrojo por detrás do artwork que, em certas alturas da sua discografia, ora assumia contornos vagamente homoeróticos, ora escandalizava com diferentes representações de deboche para as quais até Jesus Cristo (completamente cego em ácidos) chegou a ser convidado. Conheço gente que se ofenderia se as ilustrações do EP “Illogic Plastik” (1989) saíssem hoje.

Os que juram sem bandeira

Agora que o mundo se habitua à promessa de novos muros, ao encerramento de fronteiras e ao risco de retrocesso civilizacional, não só a música de João Peste e companhia continua a fazer sentido, como se torna mais urgente. E se os Pop Dell’Arte já ficariam na memória pela crueza do manifesto antifascista de “Juramento Sem Bandeira” (canção que encerrava “Free Pop”, o disco de estreia, e onde também se ouvia a voz de Adolfo Luxúria Canibal), longe estaríamos de pensar que o século XXI lhes daria ânimo para novos hinos de luta e consciência social.

Da sociedade de consumo acéfalo (tal como cinematograficamente musicada em “2002”) à mórbida serenidade de “So Goodnight” (canção de embalar dedicada à fome no mundo), é como se o grupo nos agitasse, de tempos a tempos, com uma canção que questiona o estado do mundo em que vivemos. Será que testam, desta forma, o poder da canção enquanto instrumento sociológico?

Escusado será dizer que na época das fake news e do avanço dos extremismos, os Pop Dell’Arte se mostram tão interventivos como outrora, lembrando a importância de lutar pelos nossos direitos (“Amónimo”), agora que o sonho europeu parece tão frágil e distante (“The King Of Europe”). Continue-se, pois, a fazer da canção uma arma!

Os marinheiros em frente

Tal como homens comprometidos com a deambulação marítima, o coletivo lisboeta viaja entre estilos musicais como quem abastece um navio de porto em porto. Assim se explica que a banda que compôs acutilantes poemas de sofrimento e solidão (“O Amor É Um Gajo Estranho”) seja a mesma que consegue animar clubes noturnos (“No Way Back”), dissertar sobre história da Arte (repare-se, por exemplo, nos três interlúdios instrutivos do novo álbum), fazer aparentes brincadeiras à capela (“Moon In Your Room”) ou cantorias acústicas em italiano/inglês/dada (“Avanti Marinaio”).

Sim, eles rebelam-se contra o status quo – e até nos lembram, já neste disco, que não basta que nos indignemos – mas também fabricam sketchs de comédia musical, oscilando entre a erudição e a blague, o belo e o cru, o orelhudo e o dissonante, e até entre a vulnerabilidade melancólica e o dadaísmo quase pornográfico. Que tenham feito isto ao longo de um percurso de décadas é louvável, mas que se transformem de forma tão radical no decorrer de quase todos os seus álbuns ainda o é mais.

Dependendo do que procurarmos, há uma banda para diferentes momentos e sensibilidades. Por isso, o mundo que se feche se assim quiser, pois o grupo de João Peste promete continuar a musicar uma revolução (nada) silenciosa.

Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY-SA 3.0 // Giuseppe Pinto

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